Olhou o prato vazio mais uma vez. Com um pedacinho de pão, enxugou um último resto da sopa. Tirou a água do fogo e se serviu um chá. Lá fora o vento soprava com violência audível, e os lobos uivavam ao longe. Apesar da janela estar completamente coberta pela neve, podia sentir que a nevasca passara. Deu duas pancadinhas com o nó dos dedos nos grossos vidros da janela, o suficiente para a fina camada de neve se desprender. Mais um pequeno tranco no batente, e já se podia enxergar a branca paisagem lá fora. Como ele imaginava, o farol apagara. Entrou no vestíbulo, vestiu apressado o grosso colete de lã, e o casaco por cima de tudo. Colocou o gorro e se enrolou no cachecol. Amarrou firmemente a touca do casaco, enfiou-se nas luvas e abriu a porta. Agora o vento uivava nele. Sentiu um calafrio na espinha, e afundou as grossas botas até quase o joelho na neve. Deu mais alguns passos, e antes de começar a amaldiçoar seu destino, decidiu pensar positivo. Graças a Deus, pensou, acabei de jantar, tomei meu chá e estou quente o suficiente, e com energia para ir até o farol cumprir meu dever.
O farol ficava a uns cinqüenta metros da cabana. Cinqüenta metros forrados de neve, açoitados por um vento que fazia com que parecessem quilômetros. Percorreu cada passo da ida com um pensamento feliz, lembrando seu pai e como ele falava com tanto orgulho da profissão da família. Seu coração batia feliz, apesar do vento. O pensamento em seu pai sempre o alegrava, mesmo nas horas mais tristes. Praticamente se arrastando devido ao vento, finalmente chegou a torre do farol. Devia ter seus trinta metros de altura, pura pedra empilhada. No topo estava o farol, que alumiava as perigosas águas do cabo para os navegantes. Subiu os primeiros degraus agarrando-se aos restos de corrimão que ainda resistiam presos à pedra. Era uma escadaria em espiral que serpenteava em torno da torre. Alguns degraus estavam meio soltos, fazendo com que a subida fosse em alguns pontos uma verdadeira escalada. Faltavam algumas horas para amanhecer, talvez não fizesse falta se não o acendesse. Havia subido uns quatro metros quando escorregou. Por sorte, a nevasca que caíra a pouco tinha forrado o chão com uma neve fofa, que ainda não endurecera. Foi o que o salvou. Sentiu o pé faltar com o apoio, e instintivamente se agarrou ao velho e desgastado corrimão, que não agüentou seu peso e se desprendeu da parede. Caiu como um peso morto, e sentiu cada centímetro passando como uma eternidade. Olhou pros céus, negros como a asa do corvo, e fechou os olhos. Sentiu-se afundar num colchão gelado e úmido, enquanto atravessava a camada de neve que o separava do chão, e de repente não soube mais nada.
Acordou com o apito grave da buzina do navio. Ergueu-se rapidamente do seu leito gelado e olhou pro mar. Ao longe via-se uma pequena luz de navegação. Sem o farol aquele navio não sobreviveria. Ficou de pé, apenas pra sentir uma dor enorme no tornozelo. Provavelmente estava quebrado. Se arrastou de volta pra escada e recomeçou a subir. Tentou mais uma vez ficar em pé, mas não conseguiu. Ironicamente, descobriu que subir engatinhando como um bebê era mais fácil do que subir de pé. Foi subindo rapidamente, até chegar na face da torre que era mais castigada pelo vento. Ali as coisas se complicaram. Não tinha como se segurar do corrimão, e o vento o desequilibrava de tal forma que achou que cairia de novo a qualquer instante. Mas aos poucos conseguiu chegar ao topo. O navio soava cada vez mais perto, e muito em breve estaria na zona onde sem um farol o seu destino seria funesto. Arrastou-se até o farol, colocou combustível e acendeu-o. Sentou-se encostado a parede e sorriu. Seu pai estaria orgulhoso se o visse agora. Tinha cumprido sua missão, mesmo nas circunstâncias mais adversas.
Respirou fundo. Tinha agora que preocupar-se em como ia voltar pra cabana. Suas roupas estavam encharcadas da neve, e com esse vento, logo ia congelar se ficasse ao relento. Ironicamente, descobriu que se para subir era mais fácil engatinhar, descer da mesma forma era praticamente impossível. O vento entrava pelas janelas e penetrava nos ossos. Aos poucos ia se sentindo cada vez mais frio. Um tremor passou pela sua pele. Teria que descer de qualquer forma, ou o frio roubaria suas forças e faria impossível a descida. Abriu o casaco e rasgou um pedaço da camisa, com o qual enfaixou o tornozelo, que já inchara bastante, embora não mais doesse. Apertou bem a bota por cima e ficou de pé. Quase não conseguia apoiar o pé no chão, mas deu o primeiro passo. Agarrou-se novamente aos restos do corrimão e recomeçou a descer, sentindo em cada pisada uma punhalada na própria alma. A noite corria célere, e a linha do horizonte já começava a clarear. Depois de muito sofrimento conseguiu chegar ao chão. Mas aqui a neve não permitia que fosse dando pulinhos num pé só. Teria que levantar a perna, apoiar o peso do corpo num pé só, e afundar o outro na neve. E depois repetir tudo com o outro pé. O pé quebrado. Passo após passo. Se a neve estivesse mais sólida, poderia se arrastar por ela, mas com certeza teria quebrado bem mais do que apenas um tornozelo na queda. Se. Palavrinha complicada. Ergueu o pé direito. Afundou o na neve. Sentiu o frio aliviar sua dor, até tocar no chão. Respirou fundo, e apoiou o peso no pé, erguendo a outra perna. Afundou a na neve rapidamente, sentindo as lágrimas secarem no rosto pelo vento. Com alivio, apoiou o peso na perna esquerda, e levantou rapidamente a direita. Deixou o pé afundar lentamente na neve, aliviando sua dor. Apoiou o peso no pé novamente. Lancinantemente, a dor dobrou seu corpo e o derrubou ao chão. Ficou ali, sentindo o frio o invadir, tomar suas forças, vencê-lo. Tentou se arrastar em direção a cabana, mas não tinha mais forças. Fechou os olhos e lembrou-se mais uma vez do pai, da garota de cabelos dourados que o esperava na aldeia. Sentiu o calor do seu sorriso uma ultima vez. Abriu os olhos e deitou-se de costas. Ele dominava toda sua visão do céu. O farol. Com suas pedras centenárias, olhando a costa vigilante, vendo os navios passarem, com suas cargas, seus passageiros e suas tripulações. O farol. Acesso todas as noites do ano, em qualquer estação. O farol. Fechou os olhos. O farol brilhava na escuridão da noite dividindo tudo com seu facho de luz. Abriu os olhos, e num último esforço se ergueu. Seu pai acendera aquele farol todas as noites, antes dele seu avô. E o pai de seu avô antes dele. Agora era sua vez. Enfiou o pé direito na neve, apoiou o peso e levantou a perna esquerda. Repetiu o processo, ignorou as dores, e prosseguiu. A uns metros da cabana não resistiu e tombou de novo, mas já a neve não era tão alta e pode-se arrastar até a porta da cabana. Ergueu-se mais uma vez e entrou na cabana. Antes de deitar, olhou uma última vez pela janela. Lá fora, o dia raiava. E o farol estava acesso. Deitou-se, respirou fundo, e fechou os olhos. Dormiu.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
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2 comentários:
Gostei da crônica...Você consegue colocar muito sentimento naquilo que faz.
"Não sei qual é do seu anonimato."
Ás vezes, é melhor assim. Para se evitar muitas coisas.
Omg, vc escreveu isso mesmo? Ou está compartilhando a crônica de alguém? Que beleza!!!
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