sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O rato

Eu durmo tarde. Quero dizer cedo. Adoro as madrugadas. É normal para mim dormir depois do sol nascer. Relativamente comum. Costumo ficar deitado vendo filmes até pegar no sono, por vezes até escrevendo ou fazendo outras coisas desse tipo. Um dia desses, quero dizer, uma noite dessas, me levantei para beber um pouco de água. Muita pipoca, estava com sede. Ao abrir a porta do quarto me deparei com uma sombra com rabinho correndo pra trás do fogão. A porta da cozinha estava aberta, e acho que enquanto eu olhava de um lado do fogão, a sombra fugiu pelo outro. Mas eu sabia o que era. Era um rato. Já faz alguns dias havíamos percebido um rato morando no esgoto do nosso prédio. O sacana era abusado, e às noites ele saía pra passear pelo térreo, e por vezes até subia a escada pro segundo andar. No começo era até divertida a gritaria quando alguma damisela desavisada e incauta topava com o terrível roedor. Mas agora era diferente, ele tinha entrado na minha casa, eu não entrava na dele, e ele tinha entrado na minha casa. Certifiquei-me de que ele realmente tinha ido embora, fechei a porta e coloquei um pano no vão entre ela e o chão. No dia seguinte encontrei o pano deslocado. Mas não inteiramente, como se alguém tivesse aberto a porta, mas apenas a ponta dele, evidenciando que o desgraçado tinha entrado pra fazer das suas. Havia uma panela com óleo velho de fritura semi-entornada, uma sujeira danada no chão, e um cheiro forte de urina. Puxei o fogão de lado e confirmei o que eu já sabia. Estava cheio de cocozinhos por todo lugar. Frente à inutilidade do pano, encaixei um pedaço de pau na soleira da porta da cozinha, e do meu quarto também, já antevendo a possibilidade dele entrar em algum momento em que a porta estivesse aberta, como é de costume. O pedaço de pau não era exatamente perfeito para a função, pois tinha algumas reentrâncias, e como é sabido, ratos se espremem por qualquer lugar. Coloquei então o tal pano também, para me certificar de que ele não entrasse. Falei com a administração sobre o caso, pedi q fizessem uma desratização, e, um pouco por protesto, um pouco por piada (sim, eu ainda conseguia rir com a situação), desenhei um Mickey dentro de um círculo vermelho com uma tarja por cima, e preguei do lado da porta. Sendo os ratos inteligentes como dizem que eles são, imaginei que o bastardinho entenderia o significado da coisa. Proibida a entrada de ratos. Mas ele não entendeu. Encontrei novamente o pano deslocado na manhã seguinte. Não sabia mais o que fazer, e não havia esquecido nem um pouco as lições de minha mãe. Sem falar que o miserável começava a me deixar seriamente irritado. Ele não roia nada, não comia nada. Só entrava, cagava, mijava e ia embora. Eu não fazia isso na casa dele, então porque ele fazia na minha? Foi então que eu tive uma idéia. Muito simples na verdade, mas provou se efetiva. Prendi as duas pontas do pano na própria porta, de modo a que se ela estivesse fechada, não fosse possível empurrar o pano. Por alguns dias, e noites, tive paz. Não encontrei mais sinais de que ele pudesse estar nos visitando durante as madrugadas. Pude enfim, dormir sossegado e esperar a tal desratização.
O que nos leva ao dia de hoje. Ou melhor, à madrugada de hoje. Lá pelas cinco da manhã, após assistir alguns filmes, decidi dormir. Tão logo comecei a ajeitar minha cama, escutei barulhos na cozinha. Tão altos que imaginei que o meu colega do outro quarto pudesse estar acordado, preparando alguma coisa, sendo ele quase tão madrugador quanto eu mesmo. Mas os sons pareciam erráticos, sem ritmo. Não pareciam com o ruído que alguém cozinhando ou lavando louça ou fazendo qualquer atividade típica da cozinha pudesse fazer. Lá dentro, bem no fundo, sabia que era ele. Abri a porta, peguei um pedaço de pau que havia deixado preparado especialmente para essa ocasião, e olhei pra cozinha. Subindo pela mangueira amarela do gás, lá estava ele, com seu rabo comprido e sua pelagem cinza. Numa fração de segundo, ele estava lá e logo tinha se enfiado dentro do forno. Olhei para a porta, vi o pano todo bagunçado num canto. Alguém tinha entrado e não tinha se preocupado em colocá-lo de volta. Sabia, era ele mesmo, e não me daria paz. Enquanto ele vivesse, eu sabia que estaria irremediavelmente preso à paranóia de lavar cada talher ou louça que fosse usar, antes de usar, mesmo que já estivesse limpo. De nunca poder apoiar nenhum alimento em nenhuma superfície, porque eu nunca saberia se ela estava limpa ou se ele tinha passeado por ali naquela noite. Todas as palavras da minha mãe ecoaram em minha cabeça. As doenças. Todas elas. O imaginário sobre eles. Tudo. Não tinha escolha. Era eu, ou ele. Tinha que matá-lo. Como meus antepassados, segurei com firmeza aquele pedaço de pau, aquela arma, e esperei. Fiquei em silêncio, esperando ele sair para triturar seus miolos, mas ele não saiu. Mexi um pouco o fogão com a ponta do pau, e senti ele fazer barulho dentro. Abri um pouquinho a porta do forno e soltei, e novamente ele se agitou lá dentro.
Foi aí que eu comecei a perder o controle. A figura do hominídeo com tacape se insinuava na minha mente inconscientemente. Acariciei o pedaço de madeira na minha mão e comecei a desferir golpes nas laterais do fogão, mas o dentuço não saia. Cantarolei canções de escárnio e fiz provocações baratas, mas ele não saiu. Penso agora que provavelmente ele estava com medo, mas no momento só conseguia imaginar que ele estava me sacaneando. Peguei um palito de fósforo. Se o tacape não resolvia meus problemas, talvez um dos mais antigos aliados do homem resolvesse. Acendi o forno. O fogo ia expulsar o danado de lá, mais cedo ou mais tarde. O ódio ardia nos meus olhos, bombeava sangue pra todo meu corpo, a adrenalina me mantinha atento, e eu permanecia ali, de prontidão, como um felino pronto pra pular sobre sua presa. Sentei-me calmamente e esperei. O fogo ia fazer o serviço. Se ele não saísse, morreria assado. Não demorou muito, mas pareceram horas, e ele pôs o focinho pra fora, investigando o cenário me viu, me encarou por com seu pequeno grande olho preto arregalado, e se escondeu novamente. Não tive tempo de nada, mas a cena do crânio rachado passou pela minha cabeça. Esperei mais um pouco, e ele não agüentou. Saiu se dirigiu até a porta correndo, sob uma chuva de cacetadas, percebeu que ela estava fechada, deu meia volta e correu pro outro lado, pra pequena área de serviço que tem no final da cozinha. Ele era rápido, devo admitir, e apesar da minha prontidão, me pegou de surpresa. Meus reflexos não são os melhores as seis da manhã. Se escondeu atrás do tanque, onde não tinha como atingi-lo. Fiquei espezinhando seu rabo pra ver se ele saía. Saiu. Correu, driblou, passou no meio das pernas e correu pra porta de novo. Ele podia ser rápido, mas não era assim muito esperto. Fui atrás dele, tentei novamente acertá-lo mas ele se desviava correndo em minha direção, e eu não queria acertar meus próprios pés. Voltou pra trás do tanque. Eu estava ofegante. O coração disparado bombeava sangue pro meu cérebro e meus músculos. Os pulmões se contorciam para manter esse sangue o mais oxigenado possível. Uma fúria cega tomava conta de mim. Eu arfava, rosnava, grunhia, como um homem das cavernas, um cão selvagem. Mostrava os dentes. Foi então que percebi o sangue. Haviam manchas vermelhas, vivas muito fortes, como rubis, na parede de azulejos. Olhei o chão ensangüentado e percebi. Definitivamente, ele estava ferido. Um sorriso se formou na minha boca. Espezinhei o atrás do tanque e ele fugiu, novamente, repetiu o processo, me driblou e correu pra porta. Fui atrás dele e se escondeu atrás do fogão. Acertei-lhe uma bordoada no costado, e o pequeno demônio se escondeu embaixo da geladeira. Sacudi-a pra lá e pra cá mas ele permaneceu lá. De vez em quando botava sua fucinha pra fora e me olhava com terror. Eu agora era o senhor da guerra, um guerreiro viking em frenesi, a própria reificação da morte. Ele tentou fugir subindo por trás da geladeira. Eu o vi. Enquanto ele, já desorientado e confuso, decidia o que fazer, eu levantei meu braço e desferi o golpe certeiro. Ele caiu no chão e ficou deitado de lado, me olhando com seus olhos pretos. Lembrei-me das malditas baratas, e de como elas fingiam a própria morte para escaparem depois. Ele não parecia tão ferido. Estava deitado, imóvel, de lado, mas ainda não estava morto. Ergui o tacape e destrocei sua cabeça. Um olho deixou de existir, e o outro saltou fora do outro lado. Eu nasci homem, ele nasceu rato. E agora ele ficou ali, morto.