segunda-feira, 31 de março de 2008

Crônica de um dia de Sol

O sol reduzia as sombras a pequenas linhas na base dos objetos. Os pássaros desenhavam círculos no céu azul claro, por entre fiapos brancos de um ou outro rascunho de nuvem. Os metais brilhavam com reflexos cegantes. Seus olhos recém libertos não se acostumavam à claridade do dia magnífico com que fora presenteado no dia mais importante de sua vida. Falando sinceramente, preferia mil vezes os dias nublados e chuvosos de quando fugia e se escondia pelo meio do mato. Livre. Ou até mesmo aqueles dias negros quando seus olhos e tudo o mais jaziam prisioneiros e a escuridão era seu reino.

Agora estava tudo acabado. Só lhe restava aquele horrível dia ensolarado. Aquelas nuvens brancas e aquele maldito céu azul. Que o diabo carregasse toda aquela beleza! Que fosse tudo pro inferno! Fechou os olhos, recusando-se á paisagem. Queria de volta seus dias cinzentos, que o protegiam no monte, queria de volta aquela chuva que escondia seus passos aos cães, queria de volta sua liberdade! Abriu os olhos e contemplou aquelas armas enfileiradas, seus canos frios e escuros olhando-o como um bando de lobos famintos. E dentro de cada um deles, quieto e silencioso na sua espera, um projétil ansiava pelo seu banquete de carne.

Fechou os olhos novamente. Recusava-se a morrer prisioneiro em um dia de sol. Morreria, sim, mas nos seus termos e condições. Transportou-se no tempo e espaço, e sentiu a temperatura diminuir na sua pele, o ouvido zumbir com a mudança de pressão. Corria, como sempre corria naqueles dias, os pés leves e descalços para não deixar marcas, as botas penduradas ás costas, a barra da calça dobrada até perto do joelho. Ao longe ouvia o latido dos cães e a gritaria dos homens. Mas agora sorria com a mudança de temperatura. Sabia que um dia pararia de correr, por bem ou por mal, mas não hoje. Hoje os céus e o monte o protegiam. O vento, amigo dos livres, trazia as nuvens do mar até o pé dos montes, e com elas a chuva que o esconderia dos malditos cães mais uma vez.

O céu já estava totalmente escuro agora, com seus odres cheios de água. Ao longe, sentiu as nuvens brilharem e gritarem sua fidelidade por sobre as cabeças dos seus perseguidores. E assim, uma a uma, milhões de gotas começaram a cair. Sorriu ao sentir suas palpebras molharem. Abriu os braços e agradeceu pelo descanso. Respirou fundo, aquele perfume de terra molhada pela primeira vez em dias, a camisa molhada grudando no seu peito arfante. Recomeçou a correr, com um sorriso no rosto, não o pegariam hoje!

Um grito quebrou o silêncio, e ouviu o ruído sincronizado de uma dúzia de armas sendo engatilhadas. Manteve os olhos fechados e o sorriso, sentindo ainda a chuva escorrendo dos cabelos molhados. Não morreria num dia de sol! Morreria livre, como a chuva que cai. A um novo grito seguiu-se um estampido, e sentiu os pequenos vermes de metal e fogo dilacerando-lhe a carne. Caiu de joelhos, as mãos atadas às costas, e tombou. Sentiu na boca a terra seca antes do gosto de ferro. Lá em cima, o sol brilhou-lhe zombeteiro, uma última vez.

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